quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

A diversidade pós-1970


Ensinamento

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado."
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.
(Adélia Prado, 1976)


A nossa literatura, acompanhando o processo social de complexidade, atingido desde meados do século XX, abriu-se para a diversidade. Ao lado de uma poesia prosaica ou de forte temática social, desenvolveu-se uma poesia intimista e finamente lírica. Adélia Prado exemplifica a produção poética atual e se soma aos vários poetas contemporâneos. A seleção do poema "Ensinamento" tem como objetivo discutir coletivamente os sentidos das imagens da sua composição.


terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Conforme... Disforme... Leminski


Profissão de Febre

Quando chove,

Eu chovo,

Faz sol, eu faço,

De noite.

Anoiteço,

Tem Deus,

Eu rezo,

Não tem,

Esqueço,

Chove de novo,

De novo, chovo,

Assobio no vento,

Daqui me vejo,

Lá vou eu,

Gesto no movimento.

(Paulo Leminski)



segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Nem te conto...

O conto é uma narração falada ou escrita, em geral pouco extensa e cuja ação se concentra num único ponto de interesse. Pode ser: Conto de fadas ( história popular para crianças ); fantástico (fatos aparentemente absurdos); folclórico (mitos e crendices); literário (criado artisticamente, em prosa); policial (suspense); popular (tradição oral dos povos); psicológico (revela o mundo interior das personagens, com muitos monólogos e reflexões).
"A moça tecelã" é um conto maravilhoso de Marina Colasanti. Recomendo a leitura, pois é belíssimo. Nele, a autora reflete sobre a situação feminina, a partir de fatos cotidianos. Para isso, utiliza uma linguagem sensível e uma abertura às sutilezas e aos caprichos das relações humanas.

A moça tecelã
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na laçadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos largos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la a janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para a frente e para trás, a moça passava seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranquila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas, tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos, seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida.
Aquela noite, deitada sobre o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, por algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueseu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
- Uma casa melhor é necessária - disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. - Por que ter casa, se podemos ter palácio? - Perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates de prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arremater o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da amis alta torre.
- É para que ninguém saiba do tapete - disse. E antes de trancar a porta à chave advertiu: - Faltam as estrebaria. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Se gurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e espantado olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o esplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
(Marina Colasanti)

domingo, 25 de janeiro de 2009

Humildade...


Senhor, fazei com que eu aceite
minha pobreza tal como sempre foi.

Que não sinta o que não tenho.
Não lamente o que podia
ter
e se perdeu por caminhos errados
e nunca mais voltou.


Dai, Senhor, que minh
a humildade
seja como a chuva de
sejada
caindo mansa,

longa noite escura
numa terra sedenta
e num telhado velho.

Que eu possa agradecer a Vós,
minha cama estreita,
minhas coisinhas pobres,
minha casa de chão,
pedras e tábuas remontadas.
E ter sempre um feixe de lenha
debaixo do meu fogão de taipa,
e acender, eu mesma,
o fogo alegre da minha casa
na manhã de um novo dia que começa.
(Cora Coralina
)








quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

O passado...


O Vestido


No armário do meu quarto escondo de

tempo e traça meu vestido estampado em fundo preto.

É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas

à ponta de longas hastes delicadas.

Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,

meu vestido de amante.


Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.

É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:

eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.

De tempo e traça meu vestido me guarda.

(Adélia Prado)